No último dia 22 de outubro, recebemos três convidados muito especiais para mais uma das lives quinzenais do Data Privacy Brasil. O tema, desta vez, foi a complexa interseção entre proteção de dados pessoais e a utilização de plataformas tecnológicas na educação.
Sob a moderação deste que vos escreve, conversamos com Daniela Costa, Coordenadora da Pesquisa TIC Educação, conduzida pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br); Felipe Neves, responsável pelo Google Workspace for Education na América Latina e fundador da EdTech Social Civics; e, finalmente, Leonardo Cruz, professor e pesquisador em Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará e coordenador do Observatório Educação Vigiada.
Neste post, resumimos e destacamos os principais pontos da nossa conversa, que você pode conferir na íntegra aqui. Vem com a gente!
É possível conciliar proteção de dados pessoais, tecnologias e educação?
Com o avanço da Internet e das novas tecnologias da informação e comunicação (TICS), as esferas política, econômica, cultural foram drasticamente impactadas, assim como também foram as nossas relações sociais. Tal desenvolvimento tecnológico possibilitou uma profunda transformação nas formas de acesso, produção e reprodução do conhecimento, inaugurando, de um lado, novas possibilidades para o fomento da educação, mas suscitando, de outro, uma série de desafios a serem enfrentados, sobretudo quanto a questões relacionadas à inclusão digital, autonomia tecnológica e à privacidade e proteção de dados.
Em um contexto de pandemia, em que foram necessárias medidas para se garantir o distanciamento social, houve a adoção do ensino remoto emergencial, o qual aprofundou uma tendência, já em curso, de crescente plataformização e emprego de TICs no setor educacional, forçando diferentes instituições de ensino, sejam elas públicas ou privadas, a se adaptarem a um novo contexto de educação digitalmente mediada. Nesse cenário, ganham destaque os inúmeros desafios relacionados às possibilidades e limites do uso de dados em contextos educacionais.
Como aproveitar o potencial trazido pelas novas tecnologias informacionais para a construção de um outro futuro possível para a educação? Como assegurar a privacidade e a proteção de dados pessoais de alunos e professores em um ambiente educacional cada vez mais digitalizado? De que forma política, tecnologia, sociedade e educação se inter-relacionam? Essas e outras perguntas orientaram a nossa conversa com os convidados, que trouxeram uma perspectiva multissetorial, possibilitando um rico debate.
Panorama de adoção de TICs na educação: acesso, privacidade e proteção de dados pessoais
Daniela Costa, coordenadora da pesquisa TIC Educação, deu início à nossa conversa ao contextualizar o cenário da pandemia de Covid-19 e a necessidade de se adotar medidas urgentes para a manutenção de atividades de ensino e aprendizagem.
Daniela destacou, em um primeiro momento, o fato de que a edição mais recente da pesquisa TIC Educação ter sido conduzida no momento mais crítico da pandemia, entre setembro de 2020 e junho de 2021. Nesse contexto, diversas escolas tiveram de buscar medidas emergenciais para dar continuidade às suas atividades, seja pela adoção de plataformas desenhadas para finalidades de ensino-aprendizagem ou pela adoção das redes sociais e aplicativos de mensagem instantânea.
Segundo Daniela, ao analisar os dados coletados, foi possível identificar que os maiores desafios enfrentados estavam relacionados à mediação do aprendizado pelos pais e responsáveis, o aumento da carga de trabalho dos professores e das professoras, a falta de acesso à Internet e a dispositivos eletrônicos, em domicílios de pessoas socialmente vulnerabilizadas. Havendo, portanto, uma relação direta entre a vulnerabilidade social e a conectividade à Internet, de modo que quanto mais vulnerável, menor o índice de conectividade.
Daniela salientou que as assimetrias de conectividade também podem ser visualizadas nas diferentes regiões do país, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, além de ser, também, um desafio nas áreas rurais e em escolas de menor porte, sejam elas públicas ou privadas.
Em termos de proteção de dados pessoais e privacidade, constatou que, independentemente da ferramenta utilizada para essa mediação digital da educação, há a coleta de dados, inclusive de dados biométricos, e o consequente processamento algorítmico destes.
Considerando este contexto de intensa coleta de dados, as preocupações relativas à proteção de dados pessoais são ainda mais agudas quando se tratam de dados pessoais de uma população infanto-juvenil, tendo em vista o rastro digital que elas deixarão, desde a sua infância, nesse ambiente plataformizado – o qual não foi desenhado para um público infanto-juvenil.
Educação Vigiada: Big Techs e plataformização da educação
O nosso convidado Leonardo Cruz, coordenador do Observatório Educação Vigiada, iniciou sua contribuição destacando que o intuito do Observatório é estudar o avanço do Capitalismo de Vigilância¹ e, consequentemente, da plataformização da educação. Ao longo da pesquisa realizada, apesar da dificuldade de se obter informações sobre os acordos firmados entre as universidades e as Big Techs – grandes empresas de tecnologia -, descobriu-se que 79% das Universidades Públicas brasileiras possuem seus e-mails armazenados em datacenters das empresas Google ou da Microsoft, havendo uma predominância da primeira. Segundo Leonardo, tal cenário se repete na América do Sul, sendo possível verificar que há, também, a predominância da empresa Google nas universidades de outros países da região.
Considerando tal avanço, é possível identificar alguns problemas que já estão começando a aparecer nas universidades públicas brasileiras. Segundo Leonardo, a educação pública, para o seu funcionamento pleno, tornou-se dependente de grandes empresas privadas de tecnologia, o que acarreta em uma centralização tecnológica, considerando que o cenário de produção tecnológica é dominado por um número muito reduzido de empresas. Para Leonardo, uma segunda questão relevante diz respeito à transferência de recursos financeiros públicos para o setor privado, uma vez que a Google começou a cobrar por serviços que, anteriormente, eram oferecidos gratuitamente para as universidades.
Além das questões já levantadas, nosso convidado acrescentou que uma outra dificuldade que se apresenta nesse contexto está atrelada à falta de segurança informacional. Isso se dá pelo fato de que a grande parte das comunicações acadêmicas e de pesquisa estão em servidores privados, localizados em outros países que podem ter legislações menos protetivas e que autorizem o acesso a esses tipos de informações, como é o caso dos Estados Unidos.
No contexto brasileiro, conforme apontou Leonardo, o processo de plataformização da educação acompanha a crise da educação brasileira, de modo que a falta de investimento na educação mina a capacidade dos gestores de informação das universidades e instituições públicas de ensino de gerir seus respectivos parques tecnológicos.
Destacou, ainda, que a pandemia de Covid-19 acelerou o processo de plataformização da educação, contudo o seu início e os estudos acerca desse movimento datam de muito antes do início da pandemia, sendo possível, por exemplo, verificar a presença da Google no Estado de São Paulo desde o ano de 2014.
Como a Google compreende as questões de proteção de dados pessoais e quais os cuidados que devemos ter ao utilizar as plataformas educacionais?
Felipe Neves, que atua como responsável pelo Google Workspace for Education na América Latina e é também fundador da EdTech Civics, iniciou sua fala retomando o que foi dito anteriormente pela Daniela, sobre como estávamos, antes da pandemia, em um processo embrionário de transformação digital, havendo uma intensa utilização de redes sociais para a condução de atividades de ensino-aprendizagem, tanto pelos alunos quanto pelos professores.
Ao tratar, especificamente, sobre proteção de dados pessoais, Felipe destacou que, em 2019, houve cerca de 1400 violações de dados nos Estados Unidos, o que causou o vazamento de 24 milhões de dados escolares fora desse ambiente educacional organizado, isto é, fora das plataformas. Além disso, o número de malwares nessas instituições de ensino aumentou consideravelmente.
Tendo em vista tal situação, houve, segundo Felipe, a necessidade de se desenvolver ambientes digitais que fossem mais controlados e que estabelecessem critérios de acesso baseados em contexto, como por exemplo a idade do usuário, sua localização, o horário em que o usuário está acessando esse tipo de informação, de modo que fosse possível desenvolver um ambiente mais seguro e controlado para o usuário, a partir do que se tem de tecnologia disponível no momento, buscando garantir a proteção dos dados pessoais do usuário e educar o usuário a utilizar tais plataformas de modo consciente.
Além da atuação no Google, Felipe também foi o fundador da EdTech Social Civics, que oferece cursos gratuitos e pagos para aqueles que querem ingressar no mundo jurídico. Felipe salientou que sua formação em Direito foi fundamental para conceber uma plataforma que levasse em consideração as preocupações com os dados dos usuários, de modo que fosse possível oferecer um ambiente mais seguro para aqueles que viriam a utilizar os serviços oferecidos pela Civics.
Por fim, destacou que o mundo da tecnologia sempre proporciona evoluções e aprendizados, de modo que sempre é necessário se adequar às novas necessidades que surgem ao longo do caminho.
A tendência de plataformização da educação permanece após a pandemia de Covid-19?
Ao iniciar sua exposição, Daniela reiterou que o contexto da pandemia intensificou o processo de aproximação, por parte de alunos e professores, dos recursos tecnológicos, como as plataformas. Fato que pode ter contribuído para o desenvolvimento de novas metodologias e estratégias de ensino e aprendizagem, dentro das limitações de acesso e adoção de tais tecnologias. Nesse sentido, Daniela acredita que a adoção de plataformas educacionais será uma tendência que permanecerá em um cenário pós-pandemia.
Tal tendência se relaciona com dois aspectos fundamentais: o primeiro, diz respeito à possibilidade de ampliação da conectividade no país, a partir de investimentos públicos. Daniela destacou que caso isso se concretize, haverá um aumento na utilização de Tecnologias da Informação e Comunicação no espaço educacional. O segundo aspecto, que dialoga diretamente com a exposição feita por Leonardo, se relaciona à expansão dessas grandes empresas de tecnologia e de seus respectivos modelos de negócio, que enxergam na educação um campo de atuação muito fértil.
Contudo, no interior dessa tendência, existe uma comunidade escolar, cujos gestores estão submetidos a processos decisórios muito importantes, em que devem escolher a melhor tecnologia oferecida, visando a proteção da privacidade e dos dados pessoais dessa comunidade.
Daniela destacou que, apesar de os gestores escolares possuírem um papel muito significativo, não é razoável a responsabilização dos usuários das plataformas desses recursos pela total segurança das crianças e adolescentes, especialmente quando não há muito espaço para a escolha.
Nesse sentido, Daniela recomenda que tais gestores assumam uma postura mais questionadora, frente à adoção de tais plataformas educacionais, de modo a compreender se existe uma necessidade real de utilização de tais recursos. Além disso, nossa convidada destacou a importância de mobilizar a comunidade escolar como um todo, por meio de uma comissão permanente sobre privacidade e proteção de dados pessoais que agregasse desde os gestores escolares até as famílias dos alunos, com intuito de incentivar discussões no ambiente escolar e auxiliar no processo de desenvolvimento de uma cultura de uso consciente de plataformas.
Confira abaixo algumas indicações, feitas por nossa convidada, de materiais sobre como lidar com o ambiente virtual:
- Guia “A escola no mundo digital: dados e direitos de estudantes”
- Site “Internet Segura”
- Portal do Educadigital
- Portal do SaferNet
É possível haver emancipação em um ambiente plataformizado?
Partindo da constatação feita anteriormente por Daniela, no que se refere à tendência de plataformização em um cenário pós-pandêmico, perguntamos ao Leonardo Cruz, cujas pesquisas no Observatório Educação Vigiada têm resultado em um diagnóstico bastante crítico desse atual cenário, se existem perspectivas emancipatórias em um ambiente plataformizado e quais seriam as possíveis saídas e alternativas para esse contexto.
Para Leonardo, um dos pontos de partida é o amplo debate público e multissetorial sobre o tema da plataformização, para que seja possível a construção de um consenso sobre o que está acontecendo em relação às tecnologias educacionais no Brasil, bem como sobre privacidade e proteção de dados pessoais.
Como uma etapa posterior, Leonardo vislumbra ser necessário o estímulo à utilização de tecnologias diversas e descentralizadas, que não estejam relacionadas às grandes empresas de tecnologias, como uma forma de se refletir sobre a centralização desses recursos, o que tem se mostrado um problema para a nossa Internet.
No entanto, esse estímulo não é suficiente para lidar com esse problema, especialmente quando se trata de instituições públicas de ensino. Isso se dá porque, em certos momentos, não há opção para escolha, considerando que as decisões são tomadas em outras esferas administrativas. Nesse sentido, em alguns casos a utilização de determinada ferramenta torna-se obrigatória, como ocorreu no Município de São Paulo, onde foi utilizada a plataforma Google Classroom, que permite o controle das atividades de trabalho dos professores.
Segundo Leonardo, é necessária a discussão sobre o desenvolvimento de uma solução pública para o gerenciamento de comunicação no interior de instituições públicas de ensino, tendo como um dos enfoques a própria questão de segurança digital, uma vez que, no atual cenário, todas as discussões de pesquisa produzidas em universidades públicas estão armazenadas em servidores localizados em outros países, sem que haja qualquer controle institucional sobre essas informações.
Ainda, Leonardo destacou que um dos principais motivos que possibilitou o avanço dessas grandes empresas de tecnologia sobre o setor da educação pública foi a falta de investimento em estrutura de armazenamento. Tal problema, segundo Leonardo, não foi gerado somente por questões técnicas, mas também por questões político-econômicas, nas quais o Brasil se encontra há muito tempo inserido, como por exemplo as respostas de austeridade às políticas econômicas brasileiras, como a Emenda Constitucional nº 95 que impõe o teto de gastos para o setor público, e que, historicamente, têm prejudicado a capacidade de gerenciamento das instituições públicas de ensino.
Nesse sentido, torna-se necessário vincular esse avanço ao processo de terceirização e privatização das atividades das universidades, de modo que esses problemas só vão ser solucionados quando se iniciar a discussão à luz da crise financeira da educação pública brasileira. Para Leonardo, só conseguiremos articular e desenvolver alternativas para as tecnologias desenvolvidas pelas empresas do Capitalismo de Vigilância quando o debate se der nesses termos.
Após cerca de 1h10 de ricas discussões, encerramos a live com as considerações finais de cada painelista, que destacaram a necessidade de se refletir crítica e coletivamente sobre privacidade, proteção de dados e sobre a utilização de tais plataformas educacionais.
Caso tenha perdido a conversa, reforçamos a indicação para conferir o bate papo na íntegra, que encontra-se disponível aqui!
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Até a próxima!
¹Trata-se de uma definição estabelecida por Shoshana Zuboff e que foi difundida pelo seu livro “A Era do Capitalismo de Vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira de poder”, publicado originalmente em 2018. Nele, Zuboff descreve uma mudança paradigmática na forma de acumulação de capital, capitaneada por grandes empresas de tecnologia (big techs) que, agora, apoiam seus modelos de negócio na utilização de dados, sejam pessoais ou não, valendo-se de uma lógica de vigilância sobre os usuários. O conceito também foi trabalhado no artigo “Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação” (p. 17-28), de 2016, traduzido para o português por Antonio Holzmeister Oswaldo Cruz e Bruno Cardoso.