Os vetos podem ser resumidos em cinco temas:
Decisão automatizada: anteriormente, o texto estabelecia que todo cidadão tem o direito de solicitar revisão humana sobre decisões automatizadas (tomadas por computador) das quais discorde do resultado. O veto presidencial manteve o direito à revisão, mas excluiu a condição de ela ser feita por um humano, sob alegação de que inviabilizaria modelos de negócios de pequenas empresas.
Lei de Acesso à Informação: Bolsonaro derrubou item que proibia o poder público de transferir a órgãos públicos e privados dados de pessoas que tenham solicitado informações por meio da Lei de Acesso à Informação.
Perfil do encarregado: o texto antes apontava que a figura do encarregado, pessoa responsável para ser o porta-voz quando o assunto for dados pessoais, deveria ser alguém com conhecimento jurídico regulatório sobre privacidade e dados pessoais. A exigência foi vetada pois gerava um “rigor excessivo que se reflete na interferência desnecessária por parte do Estado”.
Sanções: a ANPD perdeu poder de fogo com a exclusão da lei da possibilidade de punição com paralisação ou interrupção de atividades de tratamento de dados de um órgão.
Taxas: a ANPD tinha como fonte de receita a possibilidade de cobrar taxas por serviços prestados a órgãos privados e públicos. O item foi vetado, mantendo como principal fonte de renda o orçamento da União.
Danilo Doneda, advogado especialista em privacidade e proteção de dados pessoais e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), diz que o veto da revisão humana de decisões automatizadas, feito “sob uma justificativa bastante mal articulada”, coloca o Brasil em descompasso com o resto do mundo. “Enquanto o mundo caminha para uma maior transparência, dando maior ênfase ao fator humano nas decisões automatizadas, aqui isso é vetado. Chegamos numa situação em que a LGPD é incoerente. A decisão de uma máquina vai então ser feita por outra máquina?”, questiona. Para ele, a lei pode ser considerada incompatível com padrões internacionais como da União Europeia e da OCDE.
“Uma máquina não deveria revisar outra máquina”, diz Bruna Martins dos Santos, da Coding Rights, organização dedicada à defesa de direitos na internet. Para ela, o veto pode colaborar para que decisões automatizadas que reproduzem preconceitos continuem a discriminar pessoas no Brasil. “Dados como orientação sexual – um dado sensível de acordo com a lei – em uma sociedade que ainda vive preconceitos contra a diversidade, também podem servir a práticas de segregação, restringindo, por exemplo, as oportunidades de trabalho. A ideia de garantir a revisão por pessoa natural de decisão automatizada gira em torno de corrigir eventuais discriminações decorrentes de processos algorítmicos e conferir mais transparência a processos de perfilamento dos cidadãos em perfis de consumo, profissionais ou de crédito”, diz.
A permissão para dados sobre autores de pedidos da LAI (Lei de Acesso à Informação) serem compartilhados entre órgãos públicos e privados pode servir como um desincentivo ao uso da lei. “É inexplicável sobre qualquer ponto de vista porque a intenção da LAI é evitar que aquele que exerce o direito de acesso à informação seja perseguido”, afirma Doneda. “É um retrocesso, inclusive em termos de acesso à informação”.
O professor do IDP também se mostra contrário ao veto sobre a exigência de um conhecimento regulatório sobre dados pessoais para o cargo de encarregado. A liberdade de formação para a posição pode gerar prejuízo para quem depender da eficiência de suas funções, avalia.
Já os vetos que afetam a capacidade da autoridade de punir quem desrespeitar a LGPD foram bem vistos pelas empresas do setor de tecnologia. Da forma como ficou, a lei permite que a autoridade nacional aplique advertências e multas (de no máximo R$ 50 milhões). Esse teto, porém, foi considerado baixo.
Bruna Martins dos Santos lembra que as sanções de suspensão parcial ou total de atividade só seriam aplicadas ante a reincidência de uma determinada empresa ou entidade da administração pública. “Uma autoridade forte, com poder de sanção reforçado torna-se relevante para coibir abusos cometidos por agentes de tratamento de dados pessoais.”
Entenda a lei
A chamada Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) carrega o “geral” no nome não por acaso. Até então, as regras sobre o que governo e setor privado poderiam fazer com as nossas informações pessoais, bem como os direitos dos cidadãos sobre seus próprios dados, estavam dispersas em regulações de áreas diferentes, como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Cadastro Positivo ou o Marco Civil da Internet.
A atual lei centraliza essas regras, dá ao cidadão controle sobre seus próprios dados e vai além, indicando os princípios de privacidade e proteção de dados que devem guiar toda atividade que envolver a coleta ou o uso de dados pessoais no Brasil, como o da finalidade (só pode usar o dado para o propósito que foi previamente informado por quem coletou) e o da transparência (tudo o que acontece com o dado é informado e fica acessível ao titular).
Sendo assim, toda empresa ou repartição pública que conta com um banco de dados com informações sobre você (nome, endereço de e-mail, número do CPF, data de nascimento, o que for) terá de se adequar ao que a LGPD diz. Quem abusar, fica sujeito a ser investigado e punido pela autoridade nacional.
“Hoje, é um banco de dados que diz se você é elegível para um programa social, se vai receber crédito no banco, o que você deve ler ou ouvir nas suas redes sociais, ou determina o valor do seu plano de saúde”, diz Bruno Bioni. “Quando seus dados projetam como você é visto no mundo, uma lei geral é um veículo de cidadania. É quase uma repactuação do contrato social”.
“Dados são parte integrante das pessoas, qualquer utilização despropositada deles vai gerar prejuízo”, diz Danilo Doneda. Para ele, o primeiro efeito da lei será o empoderamento do cidadão sobre seus próprios dados. “A pessoa poderá dizer que tal coleta de dados não tem necessidade”, explica.
A lei define o que são dados pessoais e dados sensíveis (dados que recebem tratamento diferenciado por terem o potencial de causar dano ao titular, como dados genéticos, biometria, informações sobre raça/etnia, sexualidade etc.), diz que é necessário consentimento do titular para que uma empresa ou órgão público colete, use ou transfira suas informações e dá ao cidadão o direito de revogar esse consentimento, exigir a exclusão dos dados ou sua portabilidade quando quiser.
Pelo lado dos setores público e privado, ela passa a conferir a chamada “segurança jurídica”. É o que explica Bruna Martins dos Santos, analista da Coding Rights. “A lei fomenta a criação de estruturas internas responsáveis por observar as atividades de tratamento de dados, implementar relatórios de análises de risco e desenvolver políticas internas mais fortes a respeito do processamento dos dados pessoais dos seus clientes”, afirma.
No setor público, que lida com dados da população para prestação de serviços e formulação de políticas, a aplicação da lei cobre uma lacuna ao tornar as entidades da administração pública sujeitas às mesmas regras de adoção de boas práticas de segurança e proteção de dados pessoais aplicadas ao setor privado, explica a especialista.
Dentre as regras e novas obrigações, as entidades devem excluir dados pessoais depois de cumprir a finalidade para a qual foram coletados, como também indicar publicamente uma pessoa responsável para ser o porta-voz quando o assunto for ligado a dados pessoais. É a essa figura, chamada “encarregado”, que o cidadão deve recorrer sempre que quiser fazer uma reclamação, pedir esclarecimentos etc.
Junto com a ANPD, que terá seu quadro formado por pessoas indicadas pela presidência da República, a lei prevê a criação do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais, um órgão multisetorial constituído por representantes de órgãos públicos, privados, sociedade civil e academia, que tem o objetivo de acompanhar o trabalho da autoridade, fazer estudos, dar opiniões técnicas e propor diretrizes para a política de dados no país.
A LGPD entra em vigor em agosto de 2020. O prazo foi dado para que os setores público e privado tenham tempo de se ajustar ao novo contexto regulatório.
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[1] Texto originalmente publico em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2019/07/23/lei-de-protecao-de-dados-empodera-cidadao-mas-autoridade-nasce-banguela.amp.htm