O uso intensivo de dados na gestão do espaço das cidades vem crescendo, tendo como base os discursos de “cidades inteligentes”. Se as cidades vão incorporando cada vez mais o uso de tecnologias e o processamento de uma gigantesca quantidade de informações dos cidadãos, é essencial garantir a proteção desses dados e a privacidade das pessoas.
O pacote de privatizações do prefeito João Doria, em São Paulo, acendeu um alerta: entre os vários patrimônios públicos que o prefeito-empresário transfere à iniciativa privada, estão os dados dos usuários de transporte público. Imagine: todos os nossos trajetos, dados sobre renda, local de estudo e tantas outras informações pessoais passando para as mãos de empresas privadas, sem que tenhamos nenhum controle sobre isso.
Ainda que a prefeitura alegue que irá respeitar a privacidade dos passageiros, não há nenhuma garantia legal da proteção dos nossos dados pessoais. Um estudo sobre o cartão de transporte público carioca, feito pela organização Coding Rights, aponta que “não há termo legal que deixe claro como os dados do transporte dos cidadãos são utilizados e a quem são transferidos, seja no setor público ou privado”.
Nossos dados pessoais são cada vez mais valiosos e desprotegidos na cidade: das câmeras à proliferação dos aplicativos, passando pela coleta de dados de acesso à internet nos espaços públicos. Em muitos casos, essas informações estratégicas são armazenadas e controladas por empresas privadas, que vão usá-las de acordo com seu próprio interesse. Muitas vezes, interesses contrários aos nossos.
Cruzando informações de consumo, fluxos e horários de circulação das pessoas na cidade, empresas podem decidir sobre dar ou não crédito, podem antecipar perfis de doenças para encarecer planos de saúde, prejudicar pessoas presentes em manifestações, oferecer publicidade invasiva, revelar informações sensíveis de seus adversários, entre tantos abusos possíveis.
Por isso, além da necessidade de uma lei de proteção de dados pessoais nacional, tratada na campanha #SeusDadosSãoVocê, da Coalizão Direitos na Rede, começamos a discutir a urgência da proteção de dados pessoais no âmbito municipal.
O projeto vem sendo tratado por uma série pesquisadores e organizações da sociedade civil, entre as quais o Intervozes. A elaboração do texto-base foi feita pelo advogado Bruno Bioni, pesquisador da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS), em uma iniciativa coordenada por Paulo Lara, cientista social, mestre em sociologia e pesquisador vinculado à rede LAVITS.
Campinas, no interior de São Paulo, foi a primeira cidade a colocar a iniciativa em prática: no último dia 21 de setembro, o vereador Pedro Tourinho (PT) protocolou o projeto de lei de proteção de dados pessoais no âmbito municipal. Mas já há diálogos com vereadores de diferentes cidades e dos mais diversos partidos para que apresentem projetos de lei similares.
A proposta de uma Lei Municipal de Proteção de Dados Pessoais é regular a coleta e o tratamento de dados por parte da gestão municipal e empresas por ela contratadas, garantindo que as informações sejam utilizadas com transparência e para fins legítimos.
O projeto engloba as bases de dados dos serviços públicos, o uso de dados para orientar a formulação de políticas municipais e os parâmetros para a gestão pública fazer uso dos dados, garantindo aos cidadãos o controle sobre seus dados pessoais.
Direito à cidade e dados pessoais
A incorporação das tecnologias da informação e do uso massivo de dados na organização do espaço urbano não é, em si, uma ameaça à cidadania. A questão é: a qual projeto de cidade está submetida?
Há possibilidade de que os dados, com autorização e ciência dos cidadãos, possam ser usados, preservando ao máximo o direito à privacidade, para planejamento e definição de uma política pública orientada por evidências e para dar subsídios à participação das pessoas no planejamento.
Não é o que está acontecendo.
A sanha privatista do prefeito-empresário João Doria Jr. representa uma versão “pura” da visão neoliberal sobre o planejamento urbano. Na visão empresarial do espaço urbano, as cidades são tratadas cada vez mais como mercadorias ou negócios, e não como direito de seus cidadãos. É nesse contexto que o uso massivo de dados torna nossas informações uma mercadoria cujo controle é cada vez mais estratégico às empresas.
Mas as resistências a essa lógica de cidade se difundem por todo o território brasileiro. Movimentos como o Ocupe Estelita em Recife, as demandas por passe livre e tarifa zero do transporte e as ocupações urbanas dos sem-teto por todo o país refletem o clamor pela cidade como um direito de seus cidadãos. A centralidade do uso de dados na atual gestão urbana e a importância da privacidade para a democracia fazem da proteção de nossas informações uma marca essencial do nosso direito à cidade. A coleta e o tratamento seguros dos nossos dados pessoais também são fundamentais para que as cidades sejam, de fato, nossas.
* André Pasti e Marina Pita integram o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes.